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Conceito e Sentidos de Cidade

Conceito e Sentidos de Cidade

Definir a cidade como um amontoado de edifícios ou de pessoas, não é por certo a melhor forma de a definir. Como afirmam Braga e Carvalho[1] em Cidade: Espaço da Cidadania “a diferença entre uma cidade e um povoado não é meramente quantitativa”[2], pois nela são importantes as pessoas, o que elas fazem e como o fazem. Nesta mesma linha situa-se Freitag para quem a cidade, mais do que um mero aglomerado de pessoas, representa “uma estrutura político-jurídica competente e uma vida cultural própria”[3]. Esta estrutura político-jurídica da cidade é apoiada na organização social, na organização administrativa da cidade e na economia, factores que inter-relacionados permitem uma caracterização da cidade e influenciam o modelo de desenvolvimento desta.

     Freitag[4] aponta para cinco tipos de modelos de desenvolvimento das cidades contemporâneas[5], mas mais do que uma mera classificação os modelos permitem perceber que as cidades se podem definir pela sua funcionalidade em detrimento do número de habitantes e permite também reconhecer que, enquanto resultado de uma construção histórica, a cidade revela o modelo de organização social que a edificou.

   Como sustenta Dias[6], uma cidade configura um espaço organizado capaz de “ (…) garantir oportunidades de trabalho e conforto a todas as minorias, a todos os grupos”[7] e nesta perspectiva, assumo a cidade também como um sistema organizacional humano.

   Porém, nas cidades actuais “são muitas as tensões que atravessam o urbanismo, as formas de viver e de se apropriar da cidade”[8], devido ao seu crescimento, dificultando o seu governo, “ (…) sobretudo em relações de “pertença”, quer de territórios, quer de pessoas e mesmo de instituições”[9] e falar das relações de pertença do território é falar do espaço urbano.

    Entendo que o espaço urbano se caracteriza pelos diferentes tipos de relações aos quais se associam diferentes sentidos de pertença. Dito de outro modo, o espaço urbano reproduz a sociedade local e ganha complexidade com a coabitação dos dois tipos de público que nela interagem: um público originariamente urbano e familiarizado com os produtos citadinos (educacionais, culturais e outros) e um outro público resultante da ”chegada de sucessivas gerações de migrantes, quer nacionais quer estrangeiros, que trazem consigo outras representações, ainda que difusas, de bem-estar e de objectivos de vida que se traduzem em comportamentos e relações diferenciados dos seus autóctones…”[10]. Segundo José Viegas, este segundo grupo representam as minorias que se vêem

“…atraídas para a cidade, numa primeira fase pelas perspectivas de encontrar trabalho e rendimento ainda que precário, e numa segunda fase reforçadas pela protecção que a sua própria comunidade já instalada proporciona, (e que) atingem por vezes dimensões e concentrações espaciais que são geradoras de tensões, que se manifestam, quer por comportamentos agressivos em busca de rendimentos, quer em fases mais avançadas, por comportamentos defensivos do seu território face às regras da sociedade envolvente”[11].

 

   Estamos neste caso na presença de um público tendencialmente pouco familiarizado com a oferta cultural e educacional da cidade e que por isso é remetido para situações claramente consideradas de exclusão sociocultural.

   Esta realidade é observável nas configurações espaciais da política urbanística. Com efeito, a caracterização do espaço urbano através das lógicas funcional[12] e residencial[13] permite colocar em evidência especializações funcionais no espaço público que resultam na estratificação dos espaços (ex. colocação de rede transportes públicos em bairros sociais e de equipamentos culturais em zonas próximas de bairros de classe média). Com a especialização dos espaços, o cidadão e/ou a cidadã vê-se obrigado/a a aumentar a sua capacidade de mobilidade para utilizar os diversos equipamentos que o meio urbano oferece. “A mobilidade torna-se, portanto, condição de adaptação e participação na vida urbana”[14] o que significa que ela própria pode ser indutora de exclusão social, pois a capacidade de mobilidade está “estreitamente ligada quer à capacidade financeira dos indivíduos, quer e talvez ainda mais, a uma certa capacidade cultural que desenvolve ou limita as exigências de um enraizamento espacial concreto e estável”[15]. Nesta perspectiva poder-se-á considerar que a componente da mobilidade no domínio urbanístico poderá contribuir para desencadear mecanismos de controlo e de exclusão social.

Quanto à lógica residencial da cidade, esta oferece ao domiciliado dois espaços: um relativo à esfera privada – a sua casa, espaço associado ao território familiar ou grupo primário - e outro, referente ao domínio público - a avenida, o parque da cidade, o centro urbano – onde por princípio, todos têm acesso e poderá ser um espaço privilegiado para o exercício de cidadania. Ambos os espaços são pertences legítimos do cidadão e da cidadã. O primeiro, mais vocacionado para as relações afectivas e o segundo, por excelência um espaço de relações sociais.

     A realidade da cidade actual diz-nos que os seus habitantes têm também uma relação de pertença dos espaços públicos estratificada. Com efeito, para muitos cidadãos ou cidadãs existem espaços na cidade com os quais não estabelecem qualquer tipo de relação e consequentemente não se sentem identificados, sentindo-os como se de territórios vazios se tratassem. Estes vazios da cidade, por analogia com a ideia dos vazios urbanos[16], apresentada por Borde[17], são espaços onde não foi possível a construção de uma ligação identitária, quer cultural, quer social, ou mesmo ambas. Na minha perspectiva, estes espaços poderão potenciar processos de mudança urbana, processos estes, que a meu ver, implicariam num encontro com os outros e na descoberta de sentidos nestes espaços vazios de sentido, transformando-os em espaços de cidadania e de participação pública na vida da cidade. Esta é, na verdade, uma das ambições da cidade educadora.

 

   A cidade educadora ao dar a atenção ao espaço urbano e ao promovê-lo como um palco de participação cívica da população e por isso um palco educativo, está a assumir-se como uma potencial solução para a crise da cidade, provocada pela desregulação e divórcio entre o urbano e o cidadão como também o afirma Maria Limena[18].

   A CE surge como um artefacto mobilizador do homem social e solidário na linha do que defende Graça Dias[19] quando regista que “A cidade será, provavelmente, o modo mais solidário que o homem inventou, enquanto formalização da possibilidade do viver colectivo”[20].

   Mas este viver colectivo, como consequência da dinâmica da cidade ao longo dos tempos, foi-se alterando: a cidade implodiu e os efeitos de uma urbanidade doentia emergiram sobretudo nos subúrbios. Manifestações sócio-espaciais são visíveis na cidade tendo em conta que com facilidade se detectam as zonas da classe média e os bairros de operários, estes, autênticos bairros segregados na zona periférica da cidade, realidades que como sustenta Limena[21] “…evidenciam a fragmentação e a desordem – tanto do ponto de vista espacial como social –, a multiplicação dos objectos, práticas e referências (cada vez mais globalizados), mas também a exclusão e a incapacidade de responder, à complexidade crescente nos grandes centros urbanos”[22].

   Esta cidade actual, ao serviço das relações de trabalho e capital, que construiu uma rede organizacional e comunicacional complexa, atirou a população menos qualificada para níveis de pobreza e de discriminação que se reflectem também na dialéctica espaço – habitante, nas suas diferentes formas e manifestações (social, cultural, etc.). Simultaneamente, a cidade investida duma concepção menos comunitária e mais social, fez desaparecer os lugares como relações identitárias, de um dar-se com o espaço. Vive-se agora sob o signo da indiferença, manifestada pela ausência de identidade em relação ao bairro e à rua. A falta de participação cívica na vida pública é uma consequência deste novo modo de viver não com o espaço, mas no espaço. Neste cenário, e como sugere Maria Limena,

«É necessário reconhecer, (…) que a crise mais grave nas grandes cidades, hoje, é a da cidadania, que faz com que se percam, pouco a pouco, o sentimento dos interesses colectivos e a capacidade de mobilização em torno de projectos comuns, o que implica formas de gestão capazes de articular os níveis locais aos globais, como parte de um mesmo sistema[23].

 

Julgo que um caminho possível poderá ser o de repensar a cidade, reflectindo, entre outros aspectos, sobre as estratégias de humanização que caracterizam as formas de viver na cidade.

     As ideias até agora desenvolvidas em torno do conceito e dos sentidos da cidade, reportam-nos para um entendimento de que as cidades configuram representações, não sendo por isso produtos casuísticos, nem ao nível da sua organização espacial, nem ao nível da sua organização funcional ou político-social.

     Como procurei sustentar, a concepção de cidade está assim associada às organizações espacial, funcional e político-social, dimensões da realidade concreta da vida das organizações humanas, embora na sua génese esteja sempre presente como utopia um ideal de cidade[24].

   A separação entre vias pedestres e vias para carros/carruagens, a realização de habitação em série, a divisão funcional da cidade entre habitar, trabalhar e divertir, os espaços verdes como “pulmões da cidade” (a exemplo do Hyde Park em Londres e do Parque de Monsanto em Lisboa), constituem exemplos de ideias defendidas em alguns modelos de cidades utópicas, entretanto concretizadas.

     Uma característica comum às cidades utópicas reside no facto de estar sempre presente o sentido da “cidade justa, harmoniosa e ordenada”[25]colocando em evidência através da cidade, a imagem de uma sociedade perfeita. 

   Esta visão utópica de cidade pode ser facilmente referenciada na obra “Utopia” de Thomas Morus[26] e que é inspirada no mito de Atlântida da obra de Platão. Nessa obra, é descrita uma ilha de nome “Utopia” onde “se trabalhava 6 horas por dia, três horas antes e três horas depois do almoço, havendo duas horas de repouso depois das refeições. O resto das 24 horas do dia estava previsto para dormir, estudar e jogar (…) havia serviços públicos como hospitais gratuitos, escolas públicas para todos, liberdade de crença religiosa”[27], o que revela uma incrível semelhança com a actualidade.

Estas utopias urbanas idealizadas por filósofos, urbanistas e outros e testemunhadas em obras como o “Mito de Atlântida” da República e os Diálogos “Crítias” e “Timeu”, “Utopia” de Thomas Morus, “Cidade de Deus” de Santo Agostinho, “ a Cidade do Sol” de Tommaso Campanella, “Falanstério” de Charles Fourier, “Brasília: utopia ou realidade”de Lúcio Costa e Óscar Niemeyer, “La ville radieuse” de Le Corbusier, na sua generalidade não se cumpriram na íntegra, ou por se considerarem à época uma virtualidade, ou por se terem subvertido as ideias e conceitos, como refere Freitag[28].

     Nesta linha de pensamento, a cidade educadora e os princípios em que se funda pode também ser interpretada como uma utopia. Tendo consciência desta possibilidade, acredito porém que o projecto das Cidades Educadoras poderá ser uma via para a construção de uma nova visão da cidade. Ou seja, acredito que a cidade educadora, ainda que perspectivada com uma forte dose de utopia, configurará um projecto local capaz de responder às necessidades humanas, na sua dimensão global e de fomentar novas interacções entre os cidadãos e as cidadãs e os espaços da cidade. Deseja-se, neste sentido, que o cidadão e/ou cidadã participem activamente na vida da cidade, assumindo-se como produtor e/ou produtora de novas dinâmicas sociais e culturais.

 

BIBLIOGRAFIA

DIAS, Manuel Graça (2006) Manual das Cidades. Santa Maria da Feira: Relógio d’Água

     Editores.

GUERRA, Isabel (2007) “Tensões do urbanismo quotidiano”, in Políticas Urbanas,

     tendências, estratégias e oportunidades. 2ª Edição. Lisboa: Fundação Calouste

     Gulbenkian.

RÉMY, Jean, VOYÉ, Lilime (2004) A CIDADE: RUMO A UMA NOVA DEFINIÇÃO? 3ª 

     Edição. Edições Afrontamento.

VIEGAS, José Manuel (2007) “Estratégias Urbanísticas e Governabilidade”, in Políticas

     Urbanas, tendências, estratégias e oportunidades. 2ª Edição. Lisboa: Fundação

     Calouste Gulbenkian.

 

FONTES ON-LINE

BORDE, Andréa (2003) “VAZIOS URBANOS: A FORMA URBANA EM MOVIMENTO”. In

     Simpósio: "A cidade nas Américas. Perspectivas da forma urbanística no século XXI".

     51º Congresso Internacional de Americanistas, "Repensando las Américas en los

     Umbrales del Siglo XXI". Julho de 2003. [On-line]:

https://www.pgau-cidade.ufsc.br/ica/trabalhos/borde_andrea/borde_andrea.htm, 11-11-08

BRAGA, Roberto, CARVALHO, Pompeu Figueiredo (2004) Cidade: espaço da cidadania

     [On-line] https://www.rc.unesp.br/igce/planejamento/publicacoes/TextosPDF/rbraga11.pdf , 11 Agosto 2008

FREITAG, Barbara (2002) CIDADE E CIDADANIA.  [On-line]:

https://www.unb.br/ics/sol/itinerancias/grupo/barbara/cidade_cidadania.pdf, 8-11-08

LIMENA, Maria Margarida Cavalcanti (1996) – A crise das cidades contemporâneas –

     desafios do futuro. [On-line]:

https://www.seade.gov.br/produtos/spp/v10n04/v10n04_13.pdf, 8-11-08

 

 

 

 

 

 



[1] 2004

[2] Ibidem: 1

[3] Ibidem, 2002:1

[4] 2002

[5] As cidades globais, as mega-cidades, as metrópoles, as cidades periféricas e as cidades dormitório.

[6] 2006

[7] Ibidem: 109

[8] Guerra, 2007:240

[9] Ibidem: 262

[10] Viegas, 2007:262

[11] Ibidem: 265

[12] A lógica funcional refere-se ao “espaço onde a distribuição das diferentes actividades especializadas, i.e. um espaço onde a distribuição das diferentes actividades necessárias à vida social, profissional e extra profissional, se faz mediante espaços especializados.” (Rémy, 2004:71).

[13]A lógica residencial refere-se à “lógica a partir da qual se localizam os habitantes.” (Rémy, 2004: 72).

[14] Rémy, 2004: 74

[15] Ibidem: 75

[16] Borde sustenta a ideia de vazios urbanos do seguinte modo: “Consideraremos vazios urbanos aqueles terrenos localizados em áreas providas de infra-instrutora que não realizam plenamente a sua função social e económica, seja porque estão ocupados por uma estrutura sem uso ou atividade, seja porque estão de facto desocupados, vazios.” (ibidem: 2003:1)

[17]  2003

[18] 1996

[19] 2006

[20] Ibidem: 109

[21] 1996

[22] Ibidem: 120

[23] (ibidem: 123)

[24] (Freitag, 2002)

[25] (Freitag, 2002:4)

[26] (1978)

[27] (Freitag, 2002: 7-8)

[28] (2002)